sábado, 5 de dezembro de 2015

No papel de DJ

RADIO MIX | João Aguiar | Chill Out, World, Hip-Hop









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terça-feira, 24 de novembro de 2015

RÁDIO - NOVIDADES - Número 1

RÁDIO - NOVIDADES - João Aguiar - Música+Sociedade - Número 1 
- ROOTS MANUVA, LIBERDADES CIVIS NA UE, TALIB KWELI








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quinta-feira, 12 de novembro de 2015

De Portugal à Escócia em Carro

“O sonho comanda a vida”
Frase do poema Pedra Filosofal de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho.


Num dia decisivo para o futuro político de Portugal, 4 de outubro de 2015, fui votar cinco minutos depois de as urnas abrirem. Tanta questão fiz em exercer o meu direito pois não suportava o governo de coligação que lá estava. Armado em primeiro e melhor eleitor do bairro e arredores, pelas oito e quinze da manhã já votara e estava então no meu carro Skoda Fabia pela estrada fora até à Escócia. Pela frente, aguardavam-me dois mil e oitocentos quilómetros e quase quarenta horas seguidas de condução. Apesar da chuva que se atravessou no caminho e do nevoeiro que encontrei nos montes de Portugal e de Espanha, ia conduzindo com sucesso. A1, A23 e A25 com as suas complicadas portagens automáticas para quem não tem "via verde", Vilar Formoso, Salamanca, Burgos e a região basca, esta última onde a geografia tanto exaure o condutor, não obstante o esplendor natural da paisagem. De repente já estava no sul de França por onde se respirava tranquilidade e melhor clima metereológico e político. Às tantas detinha-me no facto de alguns dos sinais de trânsito estarem tapados com plástico escuro como se estivessem por estrear. Primeiro pensei ser uma brincadeira para contrariar os limites de velocidade mas depois ganhou consistência a tese de que seria devido a obras recentes na via. O sol punha-se quando cruzava esta terra e a restante França, atravessei-a com um firmamento estrelado por cima de mim. Auto-estradas grandes e bem definidas mas despidas de viaturas, tirando alguns camiões. Por vezes alguns carros colavam-se no meu encalço talvez para sermos vários na escuridão, não fosse o diabo tecê-las. Tudo isto me parecia tão animalesco e natural quanto os cardumes de peixes que se juntam uns aos outros no oceano para melhor sobreviverem, ou os pequenos que se encobrem nas caudas ou dorso dos tubarões e baleias. Os camiões e os carros que por vezes via junto a eles assemelhavam-se. Bem, somos animais e não há como escapar por vezes. Para me manter acordado pela madrugada fora liguei os ventiladores no máximo com frio e direcionados para a cara. A rádio estava com volume elevado e a passar notícias, o mais poli-tónica possível, e claro, ia parando nas estações de serviço ou "aire" em Francês para tomar café ou o mais semelhante que eles lá tivessem. A última localidade por onde passei antes da aurora despontar foi Rouen, um conjunto de sarilhos por não ter radial e a auto-estrada desembocar no centro da vila. De lá deriva a seguinte auto-estrada por onde tinha que seguir, até Callais. Numa estação de serviço parei para perguntar direções e de novo tomei café. Aí encaminharam-me de volta à estrada por onde já seguia, e estava certo portanto! Cerca de 300km depois, já imerso na Alta Normandia, os primeiros raios de luz banhavam o asfalto e podia deslindar na paisagem várias turbinas eólicas a girar. Alguns quilómetros adiante, logo depois de uma curva, avistei um grupo de cerca de vinte refugiados na berma da auto-estrada e a pedirem boleia, calculei eu. Talvez fossem também cruzar a estrada para ficarem mais perto de um ponto de acesso escondido ao túnel do comboio. Mas a surpresa, a velocidade da viatura e a impossibilidade de voltar para trás não me permitiram dar-lhes transporte. Isso poderia trazer-me problemas na fronteira também. Sim porque ela ainda existe em plena União Europeia e ainda para mais, quando ela já está claramente definida pela natureza. Uma ilha já tem fronteiras que cheguem!


Callais. Coquelles. Euro-túnel. A bilheteira. Uma nota preta para ter um título flexível pois viajava sem regresso marcado. A alfândega francesa. Tudo OK. Fila para a do Reino Unido e quando chegou a minha vez vieram as perguntas desagradáveis. Entre o funcionário que estava à janela de um posto parecido com o de uma portagem normal, e o vidro desse pequeno cubículo emergiu de um modo pernicioso e repentino um autêntico beef tingido de amarelo no seu cabelo e munido da tal arrogância que os carateriza, não sendo contudo essa a verdade geral, mas este funcionário alfandegário encaixava-se demasiado bem nesse estereótipo. What do you carry in the back? Who are you driving with? Is this your car? When did you buy it? How old are you? What are you going to do in the UK? Are you a musician? Já não podia mais com tanta impertinência, arrogância e desadequação conjunta. Esta besta interpôs-se no trabalho do seu colega para realizar isto? A menos que fosse o jogo da “besta” boa e da “besta” má, pois foi o que pareceu. Por trás desta viagem está um sonho de estudar música e áudio no Reino Unido, por lá existir uma boa oferta de cursos nesta área. Se bem que isso era mais verdade há uns quinze anos atrás. Hoje em dia, em muitos aspetos Portugal ou o ensino à distância têm muitas soluções nesta área. Contudo, um curso acessível ia começar nesse dia, segunda-feira ao fim do dia em Glasgow. A inscrição já tinha sido tratada há dias atrás e só faltava mesmo eu estar lá. Para aproveitar mais o tempo em que lá estava, levava comigo um conjunto de instrumentos para música eletrónica: máquinas de ritmos, sintetizadores, a guitarra e vários discos de vinyl. Com o inquérito para trás e uma raiva desmedida por aquele país estar fora por opção própria, e excessiva, do espaço Shengen, a estrada aguardava-me até onde quisesse ir. Pelas nove da manhã parei para trocar euros por libras e respirar fundo antes de me aventurar mais na condução à esquerda. A propósito, cuja dificuldade é um mito, alimentado pelas autoridades locais que insistem nisto para complicar e diferenciar o seu território e modo de viver dos demais povos europeus. Todos somos iguais contudo e esta não é mais do que uma bem visível face da política, orgulho e da arrogância que carateriza as terras de sua majestade. Há gente boa claro contudo, e tive a felicidade de conhecer pessoas impecáveis por lá. Agora as medidas políticas e o sentimento maioritário no povo são demasiado chauvinistas e incomodativos para com os visitantes.


Ementa de Sobremesas da cadeia de restaurantes Nando's, com inspiração em Portugal.

Pé na estrada pela M20 fora, de Dover até aos subúrbios de Londres onde me iria cruzar com a M25, circular externa da metrópole europeia que hoje alberga quase dez milhões de pessoas e de onde derivam várias estradas para os restantes cantos do país. Ao início da entrada em solo britânico, as torrentes de camiões, a maioria de matrícula estrangeira, já impunham respeito, mas ao entrar na radial, a chusma de carros que se juntaram a mim começava a ser e tornou-se mesmo avassaladora. Não sei se por não ter dormido ou se por ser simplesmente aquela uma situação ridícula, estúpida e incompreensível mas fiquei preso no trânsito desde as onze da manhã de uma segunda-feira até às três da tarde, na radial da maior cidade europeia hoje em dia. E fazerem uma nova estrada? Ou aumentarem, ainda mais, o número de faixas. Assim desconstruia o mito de que todos os britânicos entram muito cedinho no emprego e fazem tudo bem e by the book. Errado! Àquela hora não era possível que fosse diferente. Enquanto o tempo passava e os meus olhos pestanejavam com cada vez mais peso e morosidade, ia também ouvindo o vasto conjunto de boas rádios que pululam o espetro radiofónico local. A Rinse e as suas sessões de grime, rap e dubstep, assim como outras semelhantes que descobri. E só este pequeno detalhe já fazia o meu dia e valer a pena estar ali a viver aquela experiência traumática do trânsito em Londres. Duas horas depois de estar literalmente bloqueado na estrada, optei por uma saída desconhecida, que levava a um centro comercial, ou antes uma área de serviço gigante. O mais interessante é que de lá não poda ir para mais qualquer outro lado pois não havia saída simplesmente! Aquele lugar era contudo nos subúrbios de Londres. Um atalho mais curto ou um caminho sem aquela avalanche de motores estava fora de questão. Só me restava parar, sair, esticar as pernas, e porque já era hora de almoço, comer algo. A comida já se apresentava de má qualidade e pouco mais me restava escolher do que o KFC. Fast-food, fast-food, fast-food. O que mais estava à mão de semear naquele país. Se bem que cada vez mais a cultura gastronómica se compõe de culinárias do mundo o que é divinal claro, mas isso sai sempre caro ao cliente, ainda para mais em Londres onde o custo de vida é inflacionado a cada dia que passa tamanho é o aumento da procura numa urbe onde a oferta de serviços se mantém. A única explicação que encontrei para aquele bloqueio seria o decorrer dos campeonatos de râguebi ali perto de onde me encontrava, percebi em conversa com uma senhora inglesa também ela bloqueada no parque de estacionamento e dentro do seu carro. Pelas 15H estava de novo a circular pela M25 e a entrar na M6, auto-estrada que me levou até ao destino. Não havia que enganar, ou “can't miss it” como dita a user-friendship daquelas bandas, e ainda bem que assim é! O crepúsculo chegou para encobrir a paisagem quando estava a vadear Manchester. Quando cheguei à Escócia já era noite cerrada, e a Glasgow era já onze. Bolas, e a primeira aula já tinha acabado. Fiz o melhor que pude, e podia culpar os ingleses por isso, que foi algo que os escoceses adoraram ouvir!

O curso de música, um sonho, o meu carro, um hotel perto da escola, o frio a chegar, eu instalado naquele quarto que tinha criteriosamente escolhido por telefone antes de ir, voltado a sul com luz e espaçoso, o staff simpático, a vibe musical de Glasgow, a sua familiaridade, e o tamanho razoável para nela habitar e comutar. O metro circular duma cidade algo que não vira antes, matar as saudades da gastronomia portuguesa na cadeia de restaurantes Nando's, o distanciamento tipicamente nórdico dos locais, o bairro onde fiquei, Ibrox, por alguns locais reputado como um subúrbio algo estranho, pois era habitado por muito imigrantes. O hotel que albergava refugiados calculo eu que estivessem a ser integrados na sociedade pelo governo local. O estádio dos Rangers que estava a duzentos metros do hotel e que impunha respeito assim como as suas claques que em dia de jogo espalhavam autocolantes, queimavam caixotes do lixo e obrigavam uma parte do comércio a fechar mais cedo. E o carro cansado da viagem mas agora bem resguardado com um lugar no parque privativo do hotel. Todas estas foram impressões enquanto lá estive. As cinco semanas da minha estadia passaram depressa. Por vezes atingia-me a desrealização do porquê de tudo aquilo. A música, a viagem, o sonho. E ia funcionando, aos poucos. Eu ia explorando as caixas de ritmos que levava comigo e criando batidas, inspirado nos mestres brasileiros, e carregava as canções na internet para partilhar, apenas porque sim. Era o meu sonho. www.soundcloud.com/joaocarlos1

O alojamento estava a tornar-se caro mas os contratos de arrendamento exigem a duração mínima de seis meses o que era inadequado ao que pretendia. Para ter locais a tentar dirimir esta questão aconselhei-me junto da instituição de ensino para juntos encontrarmos solução, sendo que o que sucedeu foi um e-mail enviado para todos os alunos por uma secretária do diretor a perguntar se alguém poderia ceder um sofá até Dezembro a um estudante, para evitar que ele dormisse num parque de estacionamento. Ridículo, jocoso e muito pouco profissional. O ensino era bom, mas as instalações não, e esta fora a gota de água. Como tal, por já ter aprendido bastante para estar satisfeito, ainda para mais depois de um fim-de-semana em Londres num curso intensivo de Ableton Live para DJs, e por não ter pagar mais do que a primeira mensalidade, o destino impelia-me para sul. Quando chegasse ia redigir uma carta de reclamação. A chuva apoderava-se de Glasgow, depois de a ela ter trazido sol, segundo me diziam, pois outubro fora bastante equilibrado em dias estivais e temperaturas tépidas. Com dois dos estudantes combinei ir tocar para a rua, que é um hábito no centro da cidade de Glasgow, e assim foi. Em duas horas, duas libras. Nada mau! Mas o frio já se fazia sentir na Buchanan Street, e Portugal aguardava-me, agora com novos ensinamentos, paisagens vistas, pessoas cruzadas e experiências vividas.

Lisboa chama-me mas a viagem agora será com uma paragem pelo meio.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Trevo de Cinco Estrelas

Crónica de Viagem

Já do espaço aéreo se avista o verde. E isso será o que mais se vê nesta ilha. Verde, verde, verde. E diga-se que há também mais esperança por lá do que por cá mas isso fica para outra crónica. A capital Dublin, batizada com o seu nome original celta como “Dublinia”, tem a dimensão perfeita. Não demasiado grande, com cerca de meio milhão de habitantes e com bons acessos, pouco tráfego e o aeroporto a cerca de 20-30 minutos do centro de autocarro. Surpreenda-se quem esperar que lá haverá metro. Não, ou melhor, sim há mas é de superfície. O "tram" ou LUAS como é chamado. A vida no centro da cidade oscila bastante em torno da Dame Street, que está para a capital da Irlanda, assim como a Rua Augusta está para Lisboa. Muito tráfego de carros, pessoas e bicicletas também, tanto das simples, como das mais recentes versões de "tuk-tuk" a pedais. Mesmo ao lado da Dame Street, recomenda-se a incursão pelo bairro do Temple Bar adentro. E o Temple Bar não é na sua origem um Bar, ao contrário do que alguns tentarão apregoar a troco do lucro dos seus estabelecimentos. Temple Bar é sim uma antiga via de comunicação que foi aberta ao longo do Rio Liffey, e em torno da qual, vários negócios se foram instalando com o passar das décadas e séculos. A palavra Bar no inglês mais arcaico tem o significado também de viela, correnteza, caminho. Recomenda-se a passagem por esta área, que é obrigatória mesmo!

No final da Dame Street, no lado oposto ao Trinity College, encontra o mais famoso “fish&chips” da Irlanda. É ultra-pequeno, informal, mas é tão aclamado e famigerado que à sua entrada há uma tabuleta com todas as celebridades que já lá foram partilhar o pouco oxigénio ali existente no meio de tamanho festim da fritura! A comida é boa, mas para nós portugueses habituados à nossa gastronomia, poderá saber a pouco, e a óleo também. Mas isso fará parte do "fish" e das "chips". Para explorar toda esta área que inclui também o Castelo, recomendo as “Free Street Tours”, que começam junto ao antigo edifício da câmara municipal e junto ao teatro. No final haverá uma "chantagenzinha" "suave” para pedir um donativo, mas será bastante razoável dizer que o pagamento de algo ente 5 ou 10 euros por pessoa é merecido. Em Dublin respira-se história. A cidade foi palco de importantes revoluções como por exemplo a Republicana, liderada por Michael Collins, o IRA e o Sein Feinn. A visita à prisão Kilmainham Gaol é um tempo bem despendido para melhor entender as lutas do passado que levaram à libertação deste povo do jugo britânico.

Os evidentes e repetitivos sinais da ocupação da coroa britânica no norte da ilha. 
Desnecessário...

Fora da capital há varias atrações. Um carro alugado, boleia ou bicicleta são hipóteses a considerar mas chegar a alguns dos sítios com uma visita programada de autocarro, para quem estiver com pouco tempo, é igualmente uma boa forma de ir. E os autocarros partem da Dame Street, para nossa surpresa! Muito gravita em torno de lá. A rede viária na ilha é muito boa, se bem que algumas estradas junto à costa ou em zonas mais recônditas poderão ser muito estreitas. Uma das principais atrações da ilha está na ponta norte, a Calçada do Gigante, e a coroa britânica não guardou isto para eles por acaso, parece-me! Trata-se de uma formação geológica muito antiga que originou um conjunto de prismas hexagonais de várias dimensões. Reza contudo a lenda que havia ali um gigante por perto, e no outro lado do canal que separa a ilha da Escócia, outro monstro semelhante. Certo dia, o gigante Irlandês caminhou sobre a calçada para ir falar com o seu homólogo escocês, e lá chegando desgarrou-o para um desafio em solo seu, claro. Esperto! Ao retornar a casa, o gigante irlandês confessou à sua mulher o sucedido, pelo que ela preocupadíssima, decidiu dissuadí-lo dessa briga. Como tal, combinou que assim que o gigante da outra margem batesse à porta iria informar que ali não estaria mais ninguém e disfarçá-lo só para jogar pelo seguro. Assim foi: “Truz-truz”, e ela abriu e falou, ao que o gigante retorquiu “Gostaria de falar com o seu marido.” “Mas aqui não está mais ninguém, só o meu bebé”. Contudo o gigante quis vê-lo. Azar dos diabos para o escocês, o gigante da Irlanda estava disfarçado de bebé, ocupando um enorme espaço do quarto. “Mas que grande bebé aí tem minha senhora” afirmou, e logo depois ele retornou à sua Escócia. Assim reza a lenda... embora não abone muito a favor dos irlandeses. Nesta ponta da ilha vale também a pena espreitar Carrick-a-rede, atravessando a ponte de cordas, se bem que haverá muita gente para fazer esta experiência que é encarada como um desafio físico ao ar-livre, por todos literalmente, desde os miúdos até aos mais idosos. As paisagens claro são bonitas, resplandecentes nos seus tons vivos de verde, e abismais e dramáticas nas suas acentuadas falésias de pedra escura. Também na Irlanda do Norte, a paragem em Belfast justifica-se pois a história de conflitos, tensões e escaramuças é ainda sentida. Desde as bandeiras, ou a omnipresença ou o excesso delas, da Union Jack, penduradas nas janelas apenas porque sim, para afirmar a ocupação, até aos extensos e coloridos murais políticos que podem ser vistos numa zona protestante, que aludindo à paz universal, aos líderes mundiais, aos presos políticos da República da Irlanda e de outros, como por exemplo da ETA, são um conjunto significativo de arte visível para toda a cidade. Mas cuidado, se vão numa visita programada de autocarro, devem estar atentos às horas pois ainda são necessários 20 ou 30 minutos para chegar a pé até este lugar desde o centro, ou da Câmara da Cidade até lá. O táxi é outra hipótese também claro. O museu em honra do Titanic é também uma possibilidade mas fica bastante fora de mão do centro, deverá contudo valer a pena.

À exceção das cidades, dos pontos turísticos e outros legados patrimoniais, esta ilha de cinco milhões de habitantes é na sua essência paisagem. São uma imagem de marca da ilha, tanto na Irlanda, República, assim como na Irlanda do Norte, que por ser bastante plana e por lá abundarem lendas celtas e visigodas, por vezes nos dá a impressão ser na sua essência isso: um enorme planalto verde de trevos de quatro folhas, por entre os quais saltitam seres fantásticos como duendes “lepreachons”, reis, rainhas e espadachins imortais. Nas pontas mais a sul e a oeste, encontram paisagens admiráveis junto a Galway, como nos famigerados Cliffs of Moher, mas que apenas aconselho em dias limpos, em que poderá "inclusive" ver estas falésias do mar em barco. Mas fora destas condições deve pensar-se duas vezes. Em Maio e Junho há mais dias de sol e menos precipitação em toda a ilha pelo que é uma boa opção. Perto de Galway também há um pequeno tesouro guardado sob a forma de vila piscatória. E chama-se Kinvarra. A Ericeira da Irlanda, mas sem uma praia... tão boa pelo menos, claro. Não obstante vale claro a pena, para rever o nosso oceano assim como o braço de água que reentra pela pantanosa doca dos barcos adentro, ladeado por um singelo e apreciável castelo.

Em termos de infra-estruturas e organização dos serviços de apoio ao turista, as duas Irlandas estão muito bem organizadas. Ainda quanto à capital Dublin, as “hop-on hop-off tours” continuam a ser uma valia, apesar do risco associado a ir no piso superior ao ar-livre e de repente começar a chover. E a cultura é omnipresente. As encantadoras e singelas canções celtas assim como a literatura são ubíquas por estas terras. Nota final para o país dos trevos: 5 estrelas. Boa viagem!

Crónica de viagens também publicada no blog do coletivo Portuguese Riders Crew http://portugueseriderscrew.blogspot.pt



sexta-feira, 19 de junho de 2015

Despertar no Bairro

Reportagem

Famoso pela vida boémia e algumas casas de fado, mas também pelos relatos de violência, excessos noturnos ou a prostituição de outrora, o Bairro Alto não costuma chegar até nós pelos melhores motivos. Mas nessas mesmas ruas habita uma comunidade de várias idades, origens e profissões que todos os dias se levanta e se deita, num dos locais onde a noite lisboeta acontece. Num passeio matinal, fui conhecer algumas pessoas deste bairro.

"Para mim, o mais difícil era adormecer. Acordar sempre foi um sossego." 
Sr. Agostinho da Padaria “Os Bolos”

Subindo a Rua do Norte às 7H30 da manhã, o comércio está ainda fechado. Cruzo-me com o Sr. Humberto do talho, que distribui peças de carne pelas casas do bairro. O camião do lixo termina a recolha. Bárbara, caminhando misteriosa e de poucas palavras, chega a casa depois de uma noite de trabalho, enquanto escreve mensagens no telemóvel. Bato à porta d'Os Bolos, nome pelo qual já conhecia esta padaria no topo da Rua da Rosa. Está aberta todo o dia e toda a noite. O Sr. Agostinho, ribatejano, trabalhador de camisa de cavas branca e braços tatuados conta-nos que faz pão de dia e de noite, há 33 anos. "Hoje rendi de madrugada e só saio daqui ao final da tarde." Diz orgulhoso de si mesmo. Durante 15 anos viveu no prédio em frente à padaria e confessa: "Para mim, o mais difícil era adormecer. Acordar sempre foi um sossego. Mesmo nos tempos e que havia muita prostituição, o barulho era muito pouco durante a noite." A segurança nos últimos 10 anos tem sido também um problema, indica: "Hoje já não há respeito pela Polícia. Não têm medo deles. À noite já vi de tudo. Até já fizeram graffities aqui à entrada da padaria." Por estes motivos, mostra-se favorável à vídeo-vigilância e opina que o uso desta tecnologia pode melhorar a segurança de todos. Hoje é o seu dia de aniversário mas como prenda, oferece-me uma merenda folhada, ali mesmo cozinhada por ela, na panificadora. As ruas do Bairro durante esta manhã fresca de Outono continuam a padecer de uma estranha normalidade, para quem possa estar mais habituado à copofonia noturna.


Tempos de Outrora

“Antigamente as manhãs tinham outra graça! Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.” 
Dona Maria da Pensão Atalaia.

Dona Maria Dominguez, proprietária da Pensão Atalaia costuma trabalhar durante a noite. Sai do serviço às 9H30 da manhã e a esta hora dirige-se à Leitaria de esquina na Rua da Atalaia para comer algo antes de dormir. Com o vagar da idade vejo-a entrar apoiada no balanço da bengala. Senta-se e depois de introduzida na conversa pelo dono da leitaria, partilha esperançada o seu saber acumulado em 70 anos de vida e de trabalho no Bairro Alto. “Antigamente as manhãs tinham outra graça! Acordava com os jornaleiros, os vendedores de rua dos figos da capinha rota e as lavandeiras de Caneças que todos os dias nos limpavam a roupa. Ah, e os ardinas! Por vezes até via jornais a voarem das mãos deles para as varandas do terceiro andar.” Relembra com saudades de outrora. “As manhãs de hoje são mais calmas” aponta, em oposição à vida do antigamente. Mãe, avó e bisavó, Dona Maria está preocupada com o futuro das próximas gerações. Da janela de sua casa ou da receção da sua pensão espreita pela janela para ver o que se passa nas ruas do Bairro Alto durante a noite. “As raparigas agora são as piores! Bebem mais do que os rapazes.” Fala do seu neto como exemplo, jovem de 20 anos que várias vezes depois de beber um copo na noite, prefere dormir em casa da avó, em vez de conduzir embriagado até à Margem Sul do Tejo, onde reside. Mas conta também que já ela mesma sofreu situações incómodas de assédio por parte de jovens embriagados nas noitadas, ao entrar e sair do seu trabalho, a Pensão. Também aponta a alimentação dos dias de hoje como um problema que pode afetar os jovens. “Já não comem a comida feita com a dedicação de uma avó ou de uma mãe, apenas querem hambúrgueres. Assim os jovens não crescem da mesma forma”. No Bairro Alto contudo pode encontrar uma série de bons locais para comer refeições que o irão satisfazer. Por exemplo na área da gastronomia tradicional recomenda-se o Pap'Açorda ou o Bota Alta, na comida oriental o Ghandi Palace ou o Calcutá, na world-fusion o Sul, ou a quem preferir os pratos japoneses indica-se o Novo Bonsai. Os habitantes locais sentem melhorias na qualidade do seu descanso desde que os bares passaram a fechar às 2H da manhã. Mais recentemente, às 3H nas noites de sábado e domingo. Apesar de tudo, adormecer continua difícil e esse é um ponto de acordo entre os locais com os quais conversámos. A conversa acabou hospitaleira, como não podia deixar de ser com a dona de uma Pensão, e a Dona Maria ofereceu-me um café, antes de seguir caminho.

"Bom Dia!" de Franck Grenier - Licença CC BY-ND 2.0


Ruas Limpas

Os riscos nas paredes podem ser piores mas os graffities bem feitos até acho bem.” 
Sr. José, varredor, funcionário da higiene urbana.

Durante as noites ébrias deste bairro da cidade são dispensados milhares de copos de plástico. José é um dos trabalhadores que os varre durante o dia. Jovem de 30 anos que vem todos os dias da Damaia para o Bairro Alto. Aqui trabalha há um ano e desde que começou, já nota diferenças no volume de sujidade que encontra pela frente em todas as suas jornadas. “Desde há poucas semanas quando proibiram as lojas de conveniência, já não se veem garrafas de vidro no chão das ruas. Assim é melhor, agora são só copos de plástico.” Entra no emprego às 7H e varre as ruas durante a manhã com outros dois colegas, desde o topo do Bairro Alto, junto à Rua de São Pedro de Alcântara até ao Largo do Camões. Os graffities são habitualmente considerados pelas autoridades um problema de poluição visual, mas quando questionado sobre este tema, José mostra-se à vontade: “Os riscos nas paredes podem ser piores mas os graffities bem feitos até acho bem.” Aprova os murais que conhece na Damaia na Cova da Moura, junto a onde mora. “Essas pinturas trazem cor à área.” Deixa a sugestão que talvez pudessem fazer o mesmo no Bairro Alto: legalizar algumas paredes onde possam seja possível pintar esses murais. Nas paredes de várias ruas do Bairro Alto, nota-se o trabalho das brigadas anti-graffity que a Câmara Municipal de Lisboa, CML, tem financiado. Além de várias paredes sem pinturas e tags, esta última a assinatura de cada pessoas que pinta murais, é patente o trabalho que as brigadas têm levado a cabo. Até se veem limpas, as lajes e pedras que revestem as portas de rua dos antigos prédios do Bairro Alto. Os posters de evento, festivais e marcas que habitualmente invadem as fachadas dos prédios são cada vez menos, indica José. Agora existem placards próprios colocados pela CML que têm reduzido a poluição visual. Para saber mais sobre a sua profissão, José sugere-me falar com Rute, também varredora de rua. Ela é jovem e pratica o ofício há pouco tempo. Confessa que é agradável para ela trabalhar naquele bairro. Sobre a abastada quantidade de copos que todos os dias encontra pela frente, desabafa: “Quanto mais lixo houver, melhor para mim... mais horas extra recebo!”.


O Bairro

Nessa altura, apesar da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a segurança era melhor.” 
Fernando, co-fundador do estabelecimento “Pérola do Oriente”.

Atualmente apenas duas mercearias continuam em funcionamento no bairro. Já a Dona Maria contava saudosista que vários estabelecimentos de comércio tradicional fecharam nas últimas décadas, dando lugar a casas de diversão noturna. Em funcionamento há 28 anos, a “Pérola do Oriente” na Rua da Rosa é um dos locais onde ainda podemos comprar produtos frescos durante o dia. Estabelecimento de dois irmãos, e mais conhecido devido a isso, por “Os Irmãos”, divide-se entre um café e uma mercearia. O café, já preenchido de afluência pelas oito da manhã, é separado por vidros interiores da mercearia, onde com mais calma se pode conversar com um dos empreendedores. Fernando conta que ali está naquela área da cidade há 28 anos e tem assistido a muitas mudanças. Quando questionado sobre a insegurança no Bairro Alto, dá-nos o exemplo dos anos 80 de quando aquelas ruas eram muito rotinadas por prostitutas, durante a noite. “Nessa altura, apesar da má fama, os clientes eram mais educados. Dantes a segurança era melhor.” Ali trabalha durante o dia: entra às 7H e sai às 20H e assim evita as horas notívagas de maior azáfama. A meio da manhã pelas 10H30 ficam para trás as ruas do Bairro Alto. Várias lojas de roupa, calçado e discos estão ainda por abrir, à tarde. Ao caminhar diante o jornal “A Bola” os repórteres discutem a atualidade desportiva e as suas tarefas vespertinas. Dos restaurantes, já de portas entreabertas, emanam inebriantes os aromas da gastronomia portuguesa, que serão depois servidos ao almoço.

Área histórica da capital portuguesa, o Bairro Alto é frequentado de noite e habitado de dia. Aqui se encontra a boémia noturna mas também uma vida própria diurna, recheada de histórias e vontade de as partilhar.

sábado, 6 de junho de 2015

Activistas - Parte VI

ACTIVISTAS - Cimeira da guerra.
História Ficcional
João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.


Parte 6 de 6

Barra do Tribunal


Enquanto decorria a assembleia, um grupo de bombeiros sapadores expressamente convocados ao comando da polícia, com simbolismo, desencarcerava-nos dos metais e plásticos que nos agrilhoavam várias horas atrás, desde as nove da manhã. Da sede do COMETLIS fomos levados para o Tribunal do Monsanto, em Lisboa, ironicamente um dos principais lugares de paz na cidade. O relógio da carrinha da polícia, que conseguira vislumbrar marcava as quatro da tarde. Antes de sermos presentes os nove a julgamento, ficámos presos numa sala onde nunca pudemos contactar sequer com os nossos advogados. Figueira, um profissional das leis, inúmeras vezes associado às causas activistas, e que já participara em manifestações pela paz, foi o primeiro a chegar ao tribunal do Monsanto, assim que ouviu nas notícias da televisão portuguesa, que os activistas foram levados para lá.



Os seguranças do tribunal e a própria polícia impediam-no de contactar com os detidos. Impotente, aguardou a chegada de outros três advogados que conseguiu arrancar de casa, naquele sábado de Outono. Os quatro, pressionaram mais, alegando a violação de leis que asseguram os direitos básicos dos detidos. E um deles era claro, o direito a falar com um advogado. Que insensibilidade reinava às portas da instituição máxima da justiça neste país.



No vagar das horas, foram chegando cada vez mais activistas ao Monsanto. A assembleia geral no quartel deliberou fazer-se uma manifestação de apoio em frente à instituição onde estavam deitados os restantes de nós. O sol pôs-se mais cedo do que o habitual na tarde de confrontos. Pelo menos para mim. Monsanto à noite, iluminado pela parca luz do quarto crescente, apenas suficiente para iluminar um pouco daquele lugar tão estranho, improvável e esconso, onde supostamente se faria justiça. Eram já largas dezenas, do lado de lá da estrada em frente ao tribunal. Os autocarros ainda circulavam àquela hora da noite, iluminando as estradas escuras. O relógio marcava as dez horas da noite, exactamente doze depois de termos perpetrado a acção. E lá de fora só se ouvia um grito conjunto e de inequívoco apoio: ACTIVISTAS PRESOS. LIBERDADE JÁ!”



Primeiro saíram os quatro advogados, liderados pelo Figueira. Já era quase meia-noite, pelas 23H45. De seguida, e sempre a conta-gotas, aconteceu, a saída dos activistas, enfim em liberdade, ao fim de mais de doze horas de detenção ilegal. O juiz quis registar o nome, morada, dados pessoais, fiscais e bancários dos detidos, e imprimiu-lhes um cadastro, que carregarão o resto das suas vidas, por terem lutado pacificamente pela paz no mundo, num país que reconhece desde 1974, no Decreto-Lei nº 406/74 de 29 de Agosto, o livre exercício do direito de reunião em lugares públicos, independentemente de qualquer autorização estatal. Não recorremos a qualquer violência, não agredimos ninguém, nem tão pouco perturbámos a ordem pública naquele cruzamento, que já estava bloqueado à circulação pela organização da cimeira. Foi sem recurso a qualquer forma de violência, e apenas pela paz, que lutámos e por que nos prenderam.


Rockman of Zymurgy "Game Over" - CC BY-NC-ND 2.0 


Ainda hoje, cinco anos depois, espero o julgamento daqueles polícias que nem sequer uma chapa de identificação carregavam na sua farda à Robotcop. Gostaria de saber o nome deles, para pagarem a indemnização aos que ficaram com os braços partidos. Com certeza, o caso prescreveu e agora abolorece perdido no tempo dos arquivos da justiça lusitana.

A fita de cena forense foi algo que guardei. Essa tenho-a no meu quarto, e quantas vezes olho para a parede à noite antes de me deitar, e digo para comigo: “NATO GAME OVER”.



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"ACTIVISTAS - Cimeira da guerra."
História Ficcional
João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Activistas - Parte V

ACTIVISTAS - Cimeira da guerra.
História Ficcional
João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.


Parte 5 de 6

Porcos, incompetentes e maus


A chegada deles foi retumbante e violenta. As sirenes aproximavam-
-se de nós, dispostos no chão em círculo, agrilhoados e unidos entre nós por ferros metálicos dentro de tubos de plástico. Tínhamos a suspeita de que a polícia portuguesa não saberia lidar com esta situação,
por ser inédita no país.

O som projectado dos altifalantes no topo das carrinhas azuis da polícia, que deslizavam pela Avenida Gomes da Costa abaixo, ia sendo distorcido pelo efeito Doppler, à velocidade incessante e exagerada a que se deslocavam. Só pensava para comigo que era ridícula a postura da Polícia, sempre se desresponsabilizar para dar o exemplo aos restantes cidadãos. A atitude de eles próprios violarem tantas vezes, por exemplo, os limites de velocidade, mesmo quando em marcha de emergência. Chegaram com rapidez e não era o corpo policial comum, mas sim o corpo de intervenção. E que despreparados se mostraram para uma situação destas. Fomos nós os primeiros, que nos sacrificámos. Depois desta acção as supostas autoridades poderiam aprender algumas lições.

A primeira carrinha travou a fundo quando seguia ainda em velocidade, bem no centro do cruzamento. O Vítor e a Sara, os nossos “Anjos” foram a correr ter com eles para lhes explicar o intuito daquela acção. A Catarina estava a falar com os jornalistas ao mesmo tempo que lhes ia dando indicações para se moverem no cruzamento, de modo a conseguirem filmar a actuação, que se revelaria violenta da Polícia. Nós, sentados no chão, firmes uns nos outros e sempre de cabeça erguida, olhávamos de frente sempre que os polícias passavam à nossa frente. Chegou outra carrinha ao cruzamento, com um guinchar de travagem atabalhoada e descontrolada. Eram já cerca de trinta polícias equipados com capacetes. Às tantas, o Marcos grita para os Polícias acabados de chegar: Queres ver que ainda vão trazer os blindados que andam a gastar com o dinheiro dos nossos impostos.” O momento era de tensão mas esta frase de escárnio e ridicularização foi recebida com aplausos dos locais transeuntes que também olhavam para o aparato ali montado.

Cinco dos polícias aproximaram-se do círculo com o intuito claro de o desfazer, sem sequer terem pensado o que seria que nos estava a ligar. Agarraram a Maria, talvez por ser a mais frágil do grupo, e tentaram levá-la para fora do círculo. O meu braço foi de imediato arrastado para cima e para fora sentindo uma dor devido à tensão provocada nas correntes como antes nunca sentira. A Maria depressa gritou “Estamos ligados com ferros. Estamos ligados com ferros.”, o que os cinco polícias nem sequer ouviram. Como resultado imediato, todos nós seis no círculo fomos de repente arrastados pelo chão dois metros em direcção às carrinhas.

Espera lá que isso não é assim!” Veio a correr até nós, um dos polícias que estava a dialogar com a Sara e o Vítor. Boquiabertos, os restantes perceberam que isto era algo que os transcendia. Dois deles ainda continuaram a insistir que o corpo da Maria milagrosamente se soltasse do círculo, ao que ela, eu e o André voltámos a gritar “Estamos ligados com ferros!” Mas foi insuficiente, pois dessa vez a Maria esbracejou demasiado e revelando um semblante de desalento e dor. “Estou a sentir algo de errado no meu corpo. Acho que parti o braço esquerdo.”

Enquanto dez polícias conferenciavam como iriam resolver aquele imbróglio, nós continuávamos no chão, já lesionados mas firmes na nossa convicção de bloquear a cimeira da morte. A Catarina já relegava os media para segundo plano, para em vez disso nos trazer água, dando-nos de beber à boca, enquanto a exaustão, a tensão psicológica e o sol daquele dia, nos desidratavam. Já eram onze da manhã. Infelizmente, a resposta das forças foi demasiado rápida e dolorosa. Doze polícias vieram a marchar até nós, cada um deles agarrou-nos por um braço, na zona axilar, um de cada de lado. Dois para cada activista, e com algum sincronismo, gritaram os doze ao mesmo tempo que nós esperneávamos inconformados e resistentes. “Vá pessoal, três, dois, um. Levantem!”

Fomos levados até à carrinha, onde eles primeiro rebateram os assentos. Mesmo assim, com esta réstia de pensamento, durante o trajecto de cinquenta metros até às carrinhas, os nosso braços, mãos e ombros foram forçados a aguentar as deformações e tensões do tubo de plástico, dos ferros, do cavalgar mal sincronizado dos polícias. Nesse momento, continuámos a gritar: NO MORE WAR. NATO GAME OVER”. A comunicação social, filmou-nos em uníssono naquele momento de resistência. Na carrinha, estava com os braços tão esticados e os tubos tão para dentro que estava a sangrar. Sentia o sangue que escorria pelo tronco abaixo. Outros activistas estavam tão confinados ao espaço da parte traseira da carrinha e mal acomodados, que batiam com o seu corpo e a cara no vidro da carrinha. O momento por nós ali vivido era uma desumanidade.

Fomos levados para a esquadra do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, ou COMETLIS, como também se dizia, fomos encalacrados numa cela colectiva durante dez horas. A reflexão sucedânea a toda aquela manhã era inevitável. A polícia não obstante as suas vestes próprias para filmar a nova sequela do Robotcop, estava despreparada para cimeira internacional. Mesmo com os milhões gastos para comprar os blindados com dinheiros do erário público, que nem sequer antes nem durante o decorrer da cimeira. Chegaram depois da cimeira. Os polícias não souberam ouvir, não souberam agir, não conseguiram pensar, nem tão pouco proteger a integridade física das pessoas que ali se manifestavam pela paz no mundo.


Continua...



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"ACTIVISTAS - Cimeira da guerra."
História Ficcional
João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Activistas - Parte IV

ACTIVISTAS - Cimeira da guerra.

História Ficcional
João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.

Parte 3 de 6

Dia A”, de Activismo


Sábado, 25 de Setembro de 2010, era chegado o momento. O plano estava desenhado para o dia “A” de acção, e o objectivo era bloquear, impedir ou mesmo somente atrasar a concretização daquela cimeira maquiavélica. Para tal levávamos connosco material activista: correntes metálicas, algemas, tubos de plástico, um balde de tinta vermelha, muita energia interior e um espírito de equipa inamovível. Também importante um pequeno livrinho de bolso com várias instruções que devíamos seguir em caso de sermos detidos preventivamente e interrogados.

A manhã estava ainda a raiar, pelas oito e trinta do dia de Outono, e nós já estávamos a caminhar rumo ao cruzamento onde sabíamos de ante-mão por informadores na organização da cimeira, que iriam passar as viaturas oficiais dos principais protagonistas do circo de guerra montando na capital portuguesa durante dois dias.

Iolanda, Marcos, Sara, Maria, João, André, Catarina, Bart, e o Vítor. Cada um com as suas funções definidas. Falávamos pouco até chegar ao local. Mas estávamos focados em pleno no que estávamos prestes a fazer. Sabíamos também as consequências que eventualmente iríamos sofrer. Mas a defesa pela preservação da paz era mais importante. E claro, queríamos tão somente ser ouvidos. Nós, habitantes do planeta, indivíduos e seres humanos, estávamos e estamos terminantemente contra a guerra, a violência e o massacre, e aquela manhã era a forma de exprimirmos o conteúdo activista e humano que flamejava dentro de nós.

Ao chegar ao local, pelas nove e trinta, ao cruzamento entre a Avenida Gomes da Costa com a avenida que perpendicularmente levaria as viaturas até ao término da Avenida de Berlin, junto à Gare do Oriente. Aí, ainda no passeio, e ensolarados pelos raios da manhã de acção, tirámos as correntes, cadeados e algemas que levávamos na mochila. Durante as próximas duas horas íamos ficar agrilhoados uns aos outros, com o objectivo de bloquear a estrada e consequentemente atrasar a chegada dos chefes-de-estado ao evento que decorria então no Parque das Nações.

Quando nos sentássemos na estrada, íamos ficar com uma pessoa de cada lado à qual estenderíamos o braço, e à qual nos estávamos a acorrentar. Antes disso, a Iolanda tinha já lançado um balde com dez litros de tinta vermelha sobre o alcatrão do cruzamento, simbolizando o sangue das vítimas inocentes das apregoadas guerras pela paz, levadas a cabo pela NATO.

Já chega de guerras”, pensávamos todos desde que começámos a caminhada no quartel de madrugada, e de repente um de nós, o André começou a gritar. “NO MORE WAR!”. E a repetir o frase com uma cadência cada vez mais intensa. Em poucos segundos já estávamos tod@s nós, nove activistas a cantar em uníssono, aquele slogan pela paz.

Ao meu lado estava a Maria e do outro lado o Marcos. Já sentados no centro do cruzamento, sobre a tinta vermelha borrada na matiz escura, densa e opaca do macadame, formávamos um círculo de pessoas. As nossas pernas ficavam para fora, como precaução adicional para qualquer eventual carga policial do exterior do círculo. Poderíamos ter que espernear para a Polícia, caso nos atacasse à margem da lei e sem aviso prévio. As nossas costas estavam voltadas para o interior daquela pequena fortaleza de humanidade e reflexão sobre a paz no mundo. Quando a Maria me estendeu o braço dela com a sua mão no interior de um tubo de plástico PVC, inseri a minha mão primeiro e de seguida o meu braço naquele cilindro oco, para então procurar a sua mão e agarrá-la. Depois prendi-a à corrente que tinha já fixado a uma algema no meu braço. Assim estávamos fixos um ao outro no interior de um cilindro com volume suficiente para os nossos dois braços. Assim, sabíamos que quando a polícia ou segurança da NATO chegasse, eles não saberiam onde cortar o tubo, e que isso iria atrasar o nosso inimigo.

Roger Blackwell - CC-BY 2.0 - Unchanged

Com o Marcos do meu lado direito fiz o mesmo procedimento, até que passados cinco minutos, os seis no círculo estávamos ligados em série. No quartel activista, a An da Bélgica e outros activistas já tinham realizado inúmeros contactos com a imprensa para assegurar a chegada célere e atempada ao local, por parte de jornalistas de confiança, que não iriam deturpar os factos da nossa acção. A presença de jornalistas durante o acto significava também uma maior garantia de que qualquer interposição policial fosse feita sem recurso à violência.

Três de nós estavam fora do círculo, com a função de “Anjos”. Na noite anterior, na assembleia tínhamos deliberado em consenso que pelo menos dois activistas ficariam responsáveis por realizar a ponte de diálogo com a polícia, os jornalistas ou com qualquer transeunte a presenciar. A Catarina, a Sara e o Vítor ficaram com esse papel, e que depressa se revelou importante mas também ineficaz. Sentados no chão, e com o apoio dos “Anjos” gritávamos a uma só voz “NATO Game Over. No more War”. A repetição incessante deste chamamento trazia-nos sempre mais forças, ao mesmo tempo que atraía a atenção dos locais presentes naquele cruzamento de Lisboa, a uma hora matinal.


Cerca de dez minutos depois de termos dado inicio à acção, chegaram os primeiros jornalistas. E ainda bem que vieram antes da Polícia. Estes profissionais da comunicação foram contactados previamente pela equipa de relações públicas do Quartel Activista e eram merecedores da nossa confiança. Com alguma ironia, a rádio e a televisão estatais foram desprezadas, ainda que ali estivessem tão fisicamente perto, na mesma avenida e a escassas centenas de metros.

Continua...



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"ACTIVISTAS - Cimeira da guerra."
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João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Activistas - Parte III

ACTIVISTAS - Cimeira da guerra.

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João Carlos Aguiar - 30 de Junho de 2014 - Lisboa, Portugal
Alguns Direitos Reservados. CC by-nc-nd.

Parte 3 de 6

Assembleia Geral




O convite para a reunião circulava apenas entre os e as em quem se confiava. A segurança e o sucesso da estratégia estava primeiro do que tudo, e era desse modo que a assegurávamos. As e os cerca de cem activistas ali presentes sentados em poltronas improvisadas, numa grande roda de cinquenta metros de perímetro, deliberaram em consenso, tal como nos conselhos de administração das grandes empresas e da própria NATO, o plano de acções para o dia seguinte. No final do concílio e com todo o círculo de pé, soltou-se um grito em uníssono: NATO GAME OVER.



Ali todos podiam propor as suas ideias, e todas elas seriam consideradas válidas. Se alguém se opusesse a algo que seja, esse simples facto era suficiente para colectivamente termos que repensar e refinar a proposta original, até que fosse então reunido o consenso. No final da assembleia que durara cerca de duas horas, sabíamos então de que forma é que iríamos pôr um ferro hercúleo na engrenagem da cimeira da NATO.


Martins Desrois, Rossio 2011 - CC BY-SA 2.0

Dado que a nossa localização era próxima do Parque das Nações, de manhã muito cedo, um grupo de nós iria caminhar até um cruzamento por onde o carro do secretário-geral da organização de guerra, assim como os de muitos outros chefes de estado de países do Atlântico Norte, iriam passar. Isso estava já delineado pela organização da cimeira e nós obtivemos essa informação. Vários voluntariaram-se para esta acção. Outros iriam ficar no Quartel d@s Activistas a fazer contactos com a imprensa portuguesa a internacional, e a preparar a normalidade reconfortante que teria que regressar depois da acção, ao final do dia. 



Continua...


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